O Agamênon e As virtudes da casa

Janaína Cé Rossoni *
La Salle- Revista de Educação Ciências e Cultura

Este artigo visa identificar elementos caracterizadores da passagem trágica de Agamenon, de Ésquilo, na obra As virtudes da casa, de Luís Antonio de Assis Brasil, através de uma relação de identificação entre os personagens, a estrutura e os enredos das obras. Os textos suscitam novas discussões sobre o mito, sobre a tragédia humana, sobre o que rege as escolhas e os caminhos do homem.

Palavras-chave: Agamênon, mito, tragédia, literatura.

Sendo a literatura uma forma particular de comunicação e expressão, o texto literário carrega a marca da insuperabilidade, porque, assim como as pessoas, os textos literários são diferentes, portanto, não se superam. O traço da individualidade e a expressão diferenciada e singular de cada escritor fazem com que o texto literário desfrute da característica da diversidade, ou seja, que versam sobre o mesmo tema com enfoque diferente. Há renovação da palavra e, com isso, a reelaboração do tema. Os textos não se repetem; se completam. A tragédia grega de Ésquilo, Agamenon, escrita em 458 a.C., retorna à humanidade sob o novo enfoque, na obra ficcional As virtudes da casa de Luiz Antonio de Assis Brasil. Por ter relação com o mundo, o texto comunica ao indivíduo novas discussões sobre o mito, sobre a tragédia humana, sobre o que rege as escolhas e os caminhos do homem.

Em seu livro Literatura grega, Donaldo Schüler (1985, o.166) refere-se aos gregos desta forma: “[...] o homem grego rompe deliberadamente a ordem rígida do universo mítico em busca ousada de soluções livres para os problemas com que se defronta. Determinado a vencer fronteiras, provoca a emergência do ilimitado em tudo o que pensa e faz.” Em virtude disso, nasce a narrativa trágica de Ésquilo, que abrange as mais profundas aspirações do ser humano, tais como sua sede de absoluto, de transcendência e sua busca de plenitude. Essas aspirações, contudo, não pertencem apenas ao mundo grego ou à época antiga. Pertencem a todos os povos de todos os cantos do universo. A insatisfação e a inquietude estão presentes intrinsecamente no ser humano e o acompanham durante toda a sua vida.

Os comentários acima servem para justificar o estudo que será realizado nesta monografia, a qual objetiva cotejar elementos caracterizadores da passagem trágica de Agamenon, de Ésquilo, a através de pesquisa bibliográfica sobre a mitologia grega, sobre a obra Agamênon, de Ésquilo, e através da leitura, apreciação e análise do romance As virtudes da casa, de Luiz Antonio de Assis Brasil.

Nesse propósito, a monografia disporá de dois capítulos: o primeiro contribuíra com base teórica sobre o conceito de mito, o mito Agamenon na visão de alguns autores, especificamente, o mito de Agamenon na tragédia de Ésquilo; o segundo capítulo trará elementos que comprovam a presença do mito Agamenon em As virtudes da casa, através de comentários e citações que colocam em evidência as semelhanças existentes na tragédia e no romance. Pretende-se, portanto, analisar as obras e trazer à tona as coincidências que nelas se presentificam.

1 O QUE É MITO?

O vocábulo mito (do grego, mythos), sinônimo de fábula, enredo e narrativa, apresenta-se como um conceito não definido de modo preciso e unânime. Trata-se, contudo, de um aspecto antropológico fundamental, pois ele não só representa uma explicação sobre as origens do homem e do mundo, como traduz o modo como um povo ou civilização entende ou interpreta a existência.

De acordo com Massaud Moisés, em Dicionário de termos literários, a antropologia e a filosofia consideram o mito como a palavra que designa um estágio do desenvolvimento humano anterior à História, à Lógica, à Arte, ou seja, é a narrativa do que os deuses ou seres divinos fizeram no começo dos tempos. Segundo Bronislaw Malinowski (apud GRIMAL, 1922), omito realça a função social que as narrativas míticas desempenham na vida comunitária, fundamentalmente no que tange aos usos e as normas básicas do convívio, ou seja:

O mito cumpre, na cultura primitiva, uma função indispensável: expressa, acentua e codifica a crença; protege e reforça a moral; vigia a eficiência do ritual e de certas regras práticas para a orientação do homem. O mito é, assim, um ingrediente vital da civilização humana; não é uma fábula vã, mas uma força criadora ativa; não é uma explicação intelectual ou uma imagem artística, mas é u, privilégio pragmático da fé primitiva e da sabedoria moral(MALINOWSKI apud GRIMAL, 1992, p.7).



Já a consciência mítica, na qual o existir se processa em obediência a seres que regem o curso dos eventos cósmicos e humanos, entende o mito como o princípio de realidade, que fala somente do que é plenamente manifesto, i.e., do que acontece realmente. Assim, omito encadeia-se ao sagrado, revela o profundo vínculo entre o biológico e o religioso e prescreve regras para as ações (como a navegação, a pesca, a guerra etc). O mito aparece como uma condição necessária à ordem do caos e às relações entre os seres. Colaborando com essa visão, temos os estudos de Mircea Eliade (apud GRIMAL, 1992) que define omito do seguinte modo:

[...] o mito conta uma história sagrada; relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial; no tempo fabuloso das origens. Por outras palavras, omito conta como, graças aos atos dos seres sobrenaturais, uma realidade teve existência, quer seja a realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É, pois, uma narrativa de uma criação: conta-se como qualquer coisa foi produzida, como começou a ser (ELIADE apud GRIMAL, 1992, p.13).



Para Aristóteles (apus MOISÉS, 1974, p.345), o mito corresponde à imitação de ações, que intrega toda a existência e, mesmo sob o aspecto de fábula, manifesta a possibilidade dos diversos comportamentos, pensamentos e linguagens do homem. Sendo forma de comunicação humana, omito, além de relacionar-se com questões de linguagem, refere-se à vida social do homem, uma vez que a narrativa dos mitos é própria de uma comunidade e de uma tradição comum. Dessa maneira, o mito é a parole, a palavra revelada, o dito que circunscreve um acontecimento antes de fixar-se como narrativa. É através das palavras que os mitos se transmitem e garantem sua permanência num determinado período de tempo.Como afirma Roland Barthes, citado por Grimal em Dicionário de mitologia grega e romana, omito não pode, conseqüentemente, “ser um objeto, conceito ou uma idéia: ele é um modo de significação, uma forma” (apud GRIMAL, 1992, p.19). Assim, não se há definir omito “pelo objeto de sua mensagem, mas pelo modo como a profere”. Conforme o mesmo autor, “é história que transforma o real e, discurso, é ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica”.

É importante tal observação, pois nos alerta a perceber que omito só se constrói no passar do tempo, e no contar e recontar de um fato. Segundo a sabedoria popular, quem conta um conto aumenta um ponto e é nesse aumentar de pontos que os elementos míticos vão se agregando e se constituindo como uma representação coletiva, através de várias gerações, relatando uma explicação do mundo. Por conseguinte, o verdadeiro objeto do mito não são os deuses nem os ancestrais, mas a apresentação de uma versão da história de Electra e, numa tragédia perdida de Sófocles, Aletes, era a personagem principal. Na famosa versão de Eurípedes é tratada como escrava, e Egisto obriga-a, alam disso, a se casar com um simples camponês para evitar que gerasse um filho nobre, capaz de vingar a morte de Agamenon.

Quando Orestes se torna homem, retorna secretamente a Argos em companhia de Pílades, filho de Estrófios. Em uma cena que os poetas tornaram famosa, Electra encontra-se com ele ao visitar o túmulo de Agamenon e o reconhece.

A seguir, por ordem de Apolo, com ajuda de Electra e de Pílades, e através de um estratagema, Orestes mata Egisto e a própria mãe, vingando finalmente o assassinato do pai. Na Electra de Eurípides, a irmã participa ativamente da morte de Clitemnestra. Após a vingança, Orestes é perseguido pelas Erínias por matar alguém de seu próprio sangue. Açoitado e relembrado de seu fúnebre feito, Orestes corre em busca de um refúgio. Encontra-o sob Apolo, que o abriga e o protege. Surge uma nova lei e com ela a invenção do tribunal. Orestes é julgado no Areópago. Dos seis juízes, três votam a favor do perdão do crime de Orestes; três votam a favor das Erínias. A deusa Atena é convocada. Seu voto decisivo pe fundamental para o desempate. Ela vota a favor de Orestes, afinal de contas, assim passaram a pensar, um rei é muito mais importante que uma rainha.

1.2 O mito de Agamênon na tragédia de Ésquilo

Ésquilo é o mais antigo dos poetas trágicos cuja obra chegou até nossos dias. Nasceu em 525 a.C. em Elêusis, perto de Atenas, e morreu em 456 a.C. na Sicília, em Gela. Apresentou-se pela primeira vez nos concursos trágicos em Atenas, em 499 a.C., com um drama cujo nome hoje desconhecemos; obtém vitória em 484 a.C. e depois se torna vitorioso mais doze vezes. Os testemunhos antigos atribuem-lhe cerca de noventa obras, entre tragédias e dramas satíricos. De todos os seus escritos somente sete tragédias sobrevivem, graças a uma antologia compilada na época do Imperador Adriano (76-138 a.C.).

As tragédias Agamênon, Coéforas e Eumênides, de 458 a.C., constituem uma trilogia da peça Oréstia. Os personagens principais são sombrios e dominados por uma única meta: a vingança. As ações humanas têm conseqüências inevitáveis, pois sempre são guiadas pela fatalidade, pelo destino, ou pela vontade dos deuses. Interessa-nos, neste trabalho, analisar, em particular, Agamênon, a primeira tragédia e, sobretudo, a mais emocionante trilogia de Ésquilo, que conta a morte do rei logo depois da queda de Tróia.O mito, já referido anteriormente, renasce sob o olhar do poeta trágico, que habilidosamente torna os versos misteriosos, densos, ritmados e repletos de detalhes instigantes. A palavra transforma-se e traz vida ao herói, que morre apenas na história, mas continua vivo na linguagem literária.

A tragédia tem 1673 versos e constitui a primeira parte da Oréstia, premiada no concurso de 458 a.C., em Atenas. A trilogia começa nas trevas, no Palácio dos Atridas, e termina em plena luz, no Areópago de Atenas. Trevas e luto, em contraste com chama e luz, que enriquecem o texto da Oréstia, são índices preciosos que põem o leitor de sobreaviso para o grande conflito entre o matriarcado (Clitemnestra) e o patriarcado (Agamênon).

No intuito de identificar elementos caracterizadores da passagem trágica de Agamênon em As virtudes da casa, de Luiz Antonio de Assis Brasil, é indispensável, neste trabalho, conhecermos os personagens escritos por Ésquilo que representam o mito nesta primeira peça. Agamênon, filho de Atreu e rei de Argos e Micenas, é o comandante dos gregos na guerra de Tróia. Clitemnestra, filha de Tindareu e Leda, é irmã de Helena e esposa de Agamênon. Egisto, filho de Tiestes, primo e inimigo de Agamênon, torna-se amante de Clitemnestra. Cassandra, filha de Príamo, rei de Tróia, é trazida por Agamênon em sua comitiva como troféu de guerra. O vigia, o arauto, o coro, composto de doze anciãos argivos fiéis a Agamênon, e o corifeu, que exerce a função de principal representante do povo, estão presentes em grande parte das tragédias gregas.

Há, por outro lado, personagens apenas mencionados na peça (figurantes),mas que merecem distinta atenção: Menelau, irmão de Agamênon, é marido de Helena e rei de Esparta. Helena, filha de Zeus e Leda, é esposa de Menelau. O seu rapto por Páris causa a guerra de Tróia. Páris, filho de Príamo, é amante e raptor de Helena. Príamo, rei de Tróia, é pai de Páris e Cassandra. Electra representa a filha de Agamênon e Clitemnestra. Orestes também é filho de Agamênon e Clitemnestra e se encontra ausente de Argos por ocasião da volta e do assassinato de Agamênon. Mais tarde, Orestes retorna para matar Egisto e Clitemnestra, com cooperação de Electra, sua irmã. Ifigênia, irmã de Electra e Orestes, é sacrificada pelo pai. Calcas, profeta participante da expedição a Tróia, decifra as mensagens enviadas pelos deuses. Cabe salientar que os gregos são também chamados de aqueus, argivos ou helenos.

A ação do Agamênon inicia-se à noite, pouco antes do amanhecer. O vigia, que monta guarda no terraço do palácio dos Atridas, deseja ardentemente ver o sinal combinado, que anunciará a vitória aquéia sobre os troianos:

Espreito a todo instante o fogo sinaleiro/ que nos dará notícias da queda de Tróia;/ são ordens da mulher de ânimo viril,/rainha nossa, pertinaz na esperança (ÉSQUILO, 1964, p.01).



Ao lamento pela infindável fadiga, segue-se a alegria quando se acende o fogo que dá o sinal. Porém, logo o contentamento termina, por se saber o delito e o perigo que se acumulam no palácio. O anúncio da destruição de Tróia feito por Clitemnestra aos argivos não prova júbilo, pois, a vida adúltera que a rainha leva no palácio, em companhia de Egisto, não permite prever acolhida triunfal.

Tendo retornado vitorioso à pátria, Agamênon é recebido pela esposa, Clitemnestra, com falsas demonstrações de respeito e devoção. Cassandra, a princesa troiana que o acompanhava como despojo de guerra, prevê sua própria morte e a do rei. Ludibriado por Clitemnestra, Agamênon segue-lhe os passos, caminhando sobre um tapete de cor púrpura – signo do sangue que vai ser derramado – até o interior do palácio no qual, com ajuda de Egisto, ela o apunhala. O rei encontra a morte juntamente com Cassandra. Empunhando a arma assassina, Clitemnestra gloria-se do crime praticado, sem obter aprovação dos argivos, que, confiantes na justiça, aguardam novo golpe do destino.

Junito Brandão, em seu livro Teatro grego, refere-se aos personagens de Ésquilo da seguinte forma:

Suas personagens, sendo mais heróis que homens, seu drama é uma luta desesperada entre as trevas e a luz, entre a agonia e o terror, entre o Hades e o Olimpo, entre as Erínias e Apolo. Nessa luta de vida e morte, o grande trágico busca nervosa e desesperadamente uma conciliação entre o dike, o princípio da justiça e a Moira, o destino cego [...](BRANDÃO, 1985, p. 17).



O poeta grego não teme adaptar os mitos a seus interesses. Na versão de Homero, Egisto convida Agamênon para uma festa e o assassina, auxiliado por Clitemnestra. Ésquilo, com intenção de culpar a esposa atribui-lhe o papel principal no assassinato com a participação secundária de Egisto. A leitura da tragédia familiar permite a compreensão de que o orgulho e atitudes desmesuradas são punidos e o castigo torna-se inevitável. Para o poeta, não há esperança nem promessa, o sofrimento é uma página de sabedoria. A moira, fatalidade cega, esmaga o homem que ultrapassa o métron, a medida humana. Nos dramas de Ésquilo é preciso sofrer para compreender, uma vez que a dor redime e concilia. Sendo assim, Ésquilo retira do herói a imagem do homem justo e de princípios. Donaldo Schüler, em Literatura grega, manifesta-se diante desse novo herói quando diz:

Os heróis antigos já não são os modelos de virtude festejados na poesia lírica. Cobertos de crimes tornaram-se espelhos de almas divididas. Despidos da exemplaridade ética, convidam a refletir e não a serem imitados. Como aos filósofos, aos tragedistas interessa a verdade, acima do comportamento virtuoso (SCHÜLER, 1985, p. 98).



2 O MITO DE AGAMÊNON EM AS VIRTUDES DA CASA

Este capítulo visa a identificar elementos caracterizadores da passagem trágica de Agamênon, de Ésquilo, na obra As virtudes da casa, de Luiz Antonio de Assis Brasil, através de uma relação de identificação entre os personagens, a estrutura e o enredo das obras. Os textos não se repetem, se completam. A tragédia grega de Ésquilo, escrita em 458 a.C., retorna à humanidade, sob novo enfoque, na obra ficcional de Assis Brasil. Os textos suscitam novas discussões sobre o mito, sobre a tragédia humana, sobre o que rege as escolhas e os caminhos do homem.

2.1 Estrutura das obras

A peça Agamênon, composta por quatro partes, conforme Albin Lesky em História da literatura grega, traz a visão dos diversos personagens quando estes recebem a voz no diálogo. O coro e o corifeu exaltam o rei, suas conquistas e seu retorno ao palácio, Clitemnestra o amaldiçoa, justificando, no jogo de palavras que usa, seu crime, e Cassandra recebe um considerável espaço na narrativa quando profetisa sua morte e a do rei. A fala do sentinela corresponde à exposição que, em estágios anteriores, precedia o coro com a finalidade de ambientar o espectador. Ésquilo, ao inovar, tira o caráter puramente informativo do prólogo, tornando-o expressão dos conflitos de quem fala.

Em As virtudes da casa, também há um prólogo prenunciativo diante de cada uma das quatro novelas que compõem o romance. Esses prólogos correspondem a passagens de obras de escritores diversos, a fim de caracterizar os capítulos que seguem de maneira um tanto profética. Cada novela é narrada sob o olhar de uma personagem do enredo do romance. A primeira, intitulada Isabel, enfoca a visão de Isabel quanto pai, à mãe, à vida na estância e sobre o que ocorre após a chegada do francês. Na segunda, Mas os deuses estão vivos, é a vez de Jacinto contar e refletir sobre sua condição, seus problemas e seu amor pela mãe, que, sempre acolhedora, afasta-se do filho em virtude do francês. Micaela justifica seus atos e os conta com detalhe na terceira novela, As dores e os frutos. É possível perceber a discrepância comque os mesmos fatos narrados por seus filhos tomam novo enfoque em sua maneira de pensar e agir. A última novela, intitulada Os mistérios da fonte, é narrada sob a visão do padre Gabriel de Simas, que não conhece a estância, porém percebe que o clima não é próprio para uma boa estada local.

2.2 Personagens e enredos das obras

Agamênon, rei de Argos, revive na pacata estância da Fonte, em pleno pampa gaúcho, à luz das palavras de Luiz Antonio de Assis Brasil. O mito trágico ressurge na pessoa de Baltazar Antão, coronel e proprietário da estância da Fonte, que parte para a guerra contra os castelhanos, a serviço do rei. Também na tragédia esquiliana, conforme capítulo anterior, Agamênon parte para a guerra de Tróia, a fimde capturar Helena esposa de seu irmão Menelau.

O escritor gaúcho narra as vicissitudes da família de Baltazar Antão, coronel que parte para a guerra contra Artigas, mas que antes de partir reitera aos familiares o pedido de servir bem ao estrangeiro, o qual se instalará na estância. Micaela, sua esposa, e seus filhos, Isabel e Jacinto, não aceitam bem a partida do patriarca, nem mesmo esperam de bom grado a vinda do francês que não tarda a chegar.

O novo traz mudanças, e o clima saudosista da casa toma outros rumos. Sendo jovem, culto e atraente, o estrangeiro desalinha a ordem cultural vivida até então pelos membros da casa. Isabel e Jacinto encantam-se com as palavras e os modos do homem loiro. Cabe ressaltar neste momento um trecho que revela bem a magia de Félicien:

Os campos e os matos, antes tristes e sem encantos, tomavam novo sentido, sob o olhar de Félicien; desdobravam-se ondulantes, vivos, como animais ou feras que acordassem. Mortos que antes estavam, engastados em sua solidão sem serventia, agora passavam a vibrar, tornavam-se presentes, volumosos, com suas figuras, cheiros e cores. Assim era tudo em que Félicien punha os olhos. Sua mágica alcançava as coisas e elas se tornavam ouro, ou cobre, cintilações de prata (ASSIS BRASIL, 1993, p.42).



A mãe, Micaela, também deixa-se seduzir. Conhece a paixão, o prazer. O francês é luz, é vida. Mudam-se os conceitos, não há medo, vergonha, nem culpa. Tudo está justificado pela descoberta da felicidade e do amor. Micaela, portanto, representa Clitemnestra, esposa de Agamenon e irmã de Helena. Ambas são fortes, sensuais e traidoras. Na tragédia de Ésquilo, a rainha jura vingança ao marido ao saber que ele é obrigado a sacrificar a filha Ifigênia à deusa Ártemis para que o exército conseguisse embarcar. Clitemnestra, então, torna-se amante de Egisto, inimigo da família, e começa a conspirar contra o marido durante sua longa ausência. Assim, também, age Micaela ao trair o marido com o francês Félicien, que lhe oferece prazeres jamais sentidos enquanto a esposa de Baltazar Antão:

Espantava-se de estar com esses pensamentos, como se Baltazar Antão fosse um estranho, não seu marido, o homem a quem era obrigada a amar e desejar apenas o bem. Não sentia sua falta, até dava a impressão de que sempre fora solteira. Baltazar Antão era pouco mais que um nome. Talvez um nome e uma fala grossa, um semblante que se confundia com outros homens, um rosto com barba por fazer (ASSIS BRASIL, 1993, p.190).



Tanto a estância da Fonte quanto no palácio de Argos, a quietude, a paz e o sossego cedem lugar ao desespero. Enquanto Micaela saboreia sua vida adúltera, os filhos Isabel e Jacinto vivem momentos de tensão. Não aceitam a traição da mãe, e Isabel, principalmente, espera ansiosa o retorno do pai, que trará segurança e conforto à família, reestruturando a ordem da estância. Nesse ponto o drama, “A casa impregna-se com pestilências, com loucuras insondáveis como os abismos” (ASSIS BRASIL, 1993, p. 145). Isabel, então, filha de Baltazar Antão e Micaela, assemelha-se à Electra. Sofrem com o adultério e agem da mesma forma quando tomam atitudes frente aos irmãos, Jacinto e Orestes, respectivamente. Há concorrência com as mães jovens e bonitas, e intolerância quanto à desonra dos pais; por isso, o ciúme e, conseqüentemente, a raiva. Electra é maltratada pela mãe e pelo amante durante anos e Isabel obriga-se a submeter-se às ordens de Micaela, que assim procedia na estância da Fonte:

E Micaela Luzia, senhora de seus encantos, segura de sua força. Voltava a comandar, remoçada, os anos não tinham passado, ela se congelara no tempo, até sentir o toque do francês, que teve o dom de iluminar o mundo, deitando vida naquele corpo já morto, naquelas carnes adormecidas. E que novamente adquiriram sabor, mistérios, perigos. Falsidades e quebrantamentos (ASSIS BRASIL, 1993, p.118).



Devido ao fato de não poderem se expor e, de certa forma, guardarem segredo do que estava acontecendo em suas casas, a fim de manterem “as virtudes da casa”, Isabel e Electra relacionam-se com escravas, tornando-se confidentes e conselheiras. Donaldo Schüler manifesta-se, diante disso, nesta passagem em que cita Electra: “A luta pela liberdade mostra-se intensa em Electra, escravizada por quinze anos na casa da mãe assassina. A prolongada servidão não lhe dobrou o ânimo. Nos seus conflitos, aconselha-se com o coro, constituído também de escravas, identificadas com ela na revolta (SCHÜLER, 1985, p.99). Em As virtudes da casa, Isabel elege a escrava Florência que, em vários momentos, demonstra temor diante dos acontecimentos futuros. Entre tantas, cita-se, a seguir, a passagem em que Florência fala das previsões feitas por seu pai e aconselha Isabel:

Meu pai cego na senzala disse que se arma um grande mal na estância da Fonte, um mal horroroso, de pôr os cabelos em pé. Mas se vai acontecer, Florência, disse Isabel, se Deus já determinou, eu não posso fazer nada contra a vontade dEle. Lá isso é verdade, dona Isabel, mas às vezes os homens conseguem ter uma vontade que, se for bem forte, pode ir mesmo contra a vontade de Deus (ASSIS BRASIL, 1993, p.81).



Os irmãos recebem especial atenção nas narrativas. Para evitar a morte de Orestes, Electra o manda para a casa de Estrófios, rei casado com uma irmã de Agamenon. Encontra-o anos depois, para que possam dar desfecho ao crime da mãe. Jacinto, em As virtudes da casa, não suporta assistir ao comportamento de Micaela. Julga-se fraco, sendo aleijado de corpo e de “alma”, segundo Assis Brasil. Diante disso, o personagem deixa a estância e vai viver pelos campos, com os peões e os índios, com quem aprende a ter mais força e coragem. Isabel vai ao seu encontro compartilhar sentimentos e pedir ajuda. Mesmo demonstrando frieza ao receber a irmã, percebe-se nítida emoção em sua fala e em seus gestos. Nesta maneira de escrever, que explora cuidadosamente os sentimentos, Assis Brasil assemelha-se à Ésquilo. Conforme Donaldo Schüler, em Literatura grega, Ésquilo evitava sempre o encontro de pessoas que se querem, porém consentiu-o na reaproximação de Orestes e Electra, sem explorar reações sentimentais, concentrados exclusivamente no cumprimento do dever. O mesmo ocorre no encontro de Isabel e Jacinto, no qual os sentimentos não se afloram, apesar de serem quistos, devido ao incômodo familiar vivido por ambos.

O destino de Orestes é vingar a morte do pai e, dessa forma, honrar Agamenon, um rei tão forte na guerra e tão frágil no amor. Para tanto, o filho mata Egisto, o amante, e sua própria mãe, a rainha Clitemnestra, a quem tinha profundo amor. Semelhantemente, em As virtudes da casa, Jacinto consuma o mesmo ato em seus pensamentos, argumentando o feito e agindo como Orestes ao assassinar a mãe, Micaela:

De novo a idéia de morte, ele o instrumento, seria possível tanta desgraça? Uma faca, uma lâmina, um punhal enterrando-se naquela pelezinha branca, cortando os seios viciosos, o sangue denso e escuro escorrendo pelo ventre, os cheiros da carne desfibrada misturada aos perfumes de madeira. Os lindos bandos revolvidos pelos estertores da cabeça frenética, os gritos cortando o ar, um animal sacrificado (ASSIS BRASIL, 1993, p. 305).



O romance gaúcho, portanto, dialoga com a tragédia grega Agamenon. A maldição familiar presente na trilogia mais famosa de Ésquilo, repete-se no interior do Rio Grande do Sul, e o clímax dos enredos refere-se ao assassinato do rei Agamenon e ao assassinato do coronel Baltazar Antão. Quanto a este último, o prólogo da Novela IV, Os mistérios da fonte, é taxativo. Suas palavras referem-se tanto à esposa, Micaela (devido ao adultério, sua fuga sem sucesso ao encontro do francês e ao assassinato do marido), quanto ao próprio Baltazar Antão, em razão da destruição de uma cidade em ato de guerra e às decorrentes mortes assinaladas por ele. Faz-se importante citar o prólogo, cujo autor é Adolfo Casais Monteiro, do livro Poesias completas, de 1969. O trecho procura revelar o destino de quem tem algo em haver com sua própria consciência. Ao citá-lo, Assis Brasil rememora Ésquilo, a quem o destino foi profundamente salientado em Agamenon:

Tiveste o que pediste, não podes reclamar,
se veio juntamente um brinde inesperado.
Querias amor? Pois aí tens, ao amor!
Por que tiveste a inocência de julgar
que não havia nada a pagar?
(MONTEIRO apud ASSIS BRASIL, 1993, p.280).



O crime aos maridos é planejado antecipadamente pelas esposas. Cada uma com um plano vingativo em nome do amor. Clitemnestra antecipa em seu diálogo com o corifeu, de modo dissimulado, a morte de Agamenon nestas palavras:

A luta não termina com a vitória; falta
a volta, que é metade de um caminho longo.
Ainda que regressem todos de mãos limpas,
sem máculas de impiedades e excessos,
O ultraje aos muitos inimigos mortos
se não causou até agora dissabores
mais tarde pode provocar rancor divino.
Ouviste simples pensamentos de mulher (ÉSQUILO, 1964, P.14).



Micaela, resoluta em mudar sua vida, planeja a morte do marido aos poucos. Primeiro, assume seu amor por Félicien e não teme a volta de Baltazar, já que pensa estar morto na guerra:

Quem era Baltazar Antão, antes de presença tão viva e amedrontante? Quem era? Quem era Isabel, que a olhou frente à capela, os olhos acesos e atentos? No corredor, lá embaixo, não soavam os passos do marido; encontrava-se ele em outro mundo, para as bandas castelhanas, não voltava nunca, cruzado e varado por uma lança, adaga ou flecha. Ou por veneno traiçoeiro, ela pensou, lembrando-se do vidrinho que estava dentro daquela caixa (ASSIS BRASIL, 1993, p. 222).



Após ter notícias do retorno de Baltazar Antão vitorioso, planeja fugir da estância com o amante. Nesse ínterim, Micaela assume ares de Helena de Tróia, ao ousar o que jamais ninguém ousara naqueles campos: deixando a estância, rumo a Rio Pardo, a fim de encontrar com Félicien e partir mar a fora. O francês, então, parte um dia antes que ela para Rio Pardo, a fim de esperá-la. Os filhos, porém, percebendo o intento da mãe, resolvem impedir sua fuga para que, quando o pai chegasse, as virtudes da casa fossem mantidas e o ritual de espera, repleto de cerimônias, fosse cumprido. Micaela não consegue fugir. Retorna à casa decidida a assumir sua postura de mulher dona da casa:

A tormenta deixaria um traço inesquecível na fonte onde todos agora já deveriam estar comemorando a volta à sã razão. Mulher queriam-na, e ela seria mulher. Mas com tudo que uma fêmea pode representar: não só posição e feitura de vida, mas também capaz de grandes feitos, igual aos homens que podiam matar nas guerras e depois fazer o nome-do-padre ante Deus e os santos. A mulher também tem as suas guerras e suas mortes (ASSIS BRASIL, 1993, p. 360).



Tanto na tragédia grega, quanto na gaúcha, os patriarcas retornam com convidados. Baltazar Antão traz um padre, Gabriel de Simas, cuja conduta é questionável, e Agamenon, como troféu, traz Cassandra, filha do rei de Tróia. Os hóspedes percebem o clima fatídico, e ambos narram suas suspeitas e previsões quanto ao rumo dos acontecimentos.

Ao retornar vitorioso a Argos, Agamênon é recebido pela esposa, Clitemnestra, com falsas demonstrações de respeito e devoção; Cassandra, a princesa cativa de Tróia que o acompanhava, prevê a morte de ambos. Depois de entrar no palácio, com efeito, Cassandra é assassinada, e Agamenon, morto a punhaladas pela própria Clitemnestra, com a ajuda de Egisto. Cabe ressaltar os trechos que demonstram a percepção dos personagens alheios à família, quanto às tragédias irremediáveis. O primeiro refere-se à fala de Cassandra ao corifeu. O segundo trecho refere-se aos pensamentos do padre Gabriel de Simas ao observar com a família Baltazar Antão, conforme expõe o narrador:

Oh! Que visão é essa? A mortalha?
Não! Não! O véu fatal que antevejo
vem dela, companheira de seu leito
e cúmplice do crime. Vocifera
o bando furioso que persegue
ainda e sempre esta nobre raça;
com os gritos rituais festeja o feito
que só a mais severa pena pune!
(ÉSQUILO, 1964, p. 43).

Baltazar Antão continuava na mesma andadura, lentamente aproximavam-se, e Gabriel podia distinguir melhor os rostos, e o que via não melhorava o ânimo: estavam sérios. Não preocupados, nem alardeando dignidade, não. Sérios como de caso pensado, como gravemente envoltos em um segredo. As lanternas coloridas, que balançavam alegres nos galhos de grande árvore faziam nítida confrontação com a imagem das pessoas. Não era isto que o padre esperava encontrar na estância da Fonte (ASSIS BRASIL, 1993, p. 346).



Os vitoriosos retornam aos lares recebidos através dos rituais cerimoniosos. Nas duas obras, as matriarcas, Clitemnestra e Micaela, abençoam os maridos. Aquela dirige-se a Zeus, “Zeus perfeito”, e esta abençoa o coronel, que volta são e salvo à estância, em nome de Deus. Quanto ao sentido das cerimônias, o autor Assis Brasil, assim se manifesta no enredo:

As cerimônias e rituais são bons apaziguadores das emoções, disciplinam com método qualquer arroubo, e marcam o que se deve dizer e até pensar. Muito necessárias, as cerimônias, pois nada como uma boa disciplina para submeter os humores aquosos do organismo e, principalmente, subjugar os apetites (ASSIS BRASIL, 1993, p. 340).



Agamenon aparece no carro aberto puxado por soldados; atrás, em outro carro, está Cassandra. Quando param os carros, nos quais permanecem Agamênon e Cassandra, os anciãos do coro se curvam reverentemente para saudar o rei. Clitemnestra aparece, seguida de numerosas criadas, que trazem uma longa passadeira púrpura. A rainha ordena-as a atapetar o chão ao longo da via que percorrerá o rei. Agamênon pede às servas que soltem as sandálias de seus pés, para que caminhe com modéstia sobre o rico adorno cor de púrpura. Depois de apresentar Cassandra à rainha, o rei desce do carro, caminha sobre o tapete seguido por Clitemnestra e as criadas. As portas do palácio são fechadas e, em seguida, ouve-se um grito. O rei é morto a punhaladas, estirado no chão e coberto com panos. A rainha permanece de pé ao lado do corpo, dirigindo-se aos anciãos desta maneira:

Contemplo enfim o resultado favorável de planos pacientemente preparados. Estou aqui exatamente no lugar em que seguida e firmemente o golpeei no cumprimento de missão apenas minha.

Os fatos foram estes, não irei negá-los: a fim de obstar qualquer defesa ou reação em tentativa de fugir ao seu destino emaranhei-o numa rede indestrutível igual à manejada pelos pescadores, vestindo-o com um manto fértil em desgraças (ÉSQUILO, 1964, p. 58).



A peça finaliza, portanto, tragicamente, com a última frase dita por Clitemnestra ao amante e cúmplice, Egisto: “Eu e tu, senhores do palácio, teremos o poder bastante para pôr em ordem tudo e todos” (ÉSQUILO, 1964, p. 70).

A morte de Baltazar Antão assemelha-se à de Agamênon. Ao regressar, o coronel é recebido com cerimônia usual do interior. Aproxima-se da Fonte a cavalo. Logo atrás, vem o padre Gabriel de Simas. Todos, familiares, escravos, ceifeiros, criados, permanecem em silêncio para ouvir as palavras do senhor da estância que retorna da guerra e aguardam seus cumprimentos à esposa e aos filhos. Dá-se início à festa. Convidados saúdam o dono da casa. Comidas e bebidas são servidas em abundância e todos esperam ansiosos a presença da esposa que deve fazer as honras da casa. Enquanto Baltazar dança com a filha, Micaela prepara o leito de morte. Veste-se com o vestido preto de cetim, arruma a cama com lençóis de linho bordado, esparrama água de cheiro, escolhe uma garrafa de vinho e dois copos. Dirige-se ao terreiro, dança com o marido, que se entrega à sedução da esposa, desconhecendo todo o horror que malsinara a Fonte durante sua ausência. Micaela o conduz em direção à casa e o leva ao quarto. Algum tempo depois, o povo recebe a notícia de que o coronel está morrendo. O padre Gabriel de Simas é conduzido ao quarto de Baltazar e o encontra

Estirado na cama, arroxeado, com a camisa aberta, o peito arfava em solavancos, a língua saía para fora em meio uma golfada de sangue” (ASSIS BRASIL, 1993, p. 377).

Baltazar Antão morre envenenado e apunhalado. Tudo é preto e triste. Apenas o que faísca à luz de uma vela é a gargantilha de rubi de Micaela, que brilha festivamente, “parecendo ser a única coisa com vida em meio àquele cenário fúnebre (ASSIS BRASIL, p. 379).



Assemelham-se o brilho do rubi de Micaela e a cor púrpura do tapete de Clitemnestra. Essas cores e adornos simbolizam o sangue e a vitória nas duas tragédias, previdentemente utilizados por elas.

Agamênon e Baltazar morrem sem saberem do adultério e do sofrimento dos filhos. Morrem após terem retornado vitoriosos de lutas cheias de sangue e morte. Morrem em seus próprios lares, vítimas de suas mulheres.

Ésquilo, ao abordar a religião e a ética em sua peça, investiga o problema do sofrimento humano, evidenciando a que a destruição da felicidade não se deve à inveja dos deuses, mas ao mal existente no homem. A presença dos deuses, como seres virtuosos, cheios de compaixão e justiça está em grande parte do Agamênon. Já no início, o sentinela pede aos deuses que o liberem da vigília cansativa devido ao ato de esperar por Agamênon e anunciar a queda de Tróia. O ancião, por sua vez, em versos que mais tarde se tornariam famosos, exalta a grandiosidade de Zeus:

Agora os mortais que reconhecem
Convictamente em Zeus o vencedor
Final
Desfrutam do conceito de mais sábios,
Pois foi o grande Zeus que conduziu
Os homens
Pelos caminhos da sabedoria
E decretou a regra para sempre certa:
O sofrimento é a melhor lição
(ÉSQUILO, 1964, p. 07).

Para o poeta, o sofrimento é uma página de sabedoria e “o dom supremo é o comedimento”. Em As virtudes da casa, também há a presença da religião. Seja na construção da capela por Baltazar Antão, nas orações de Isabel, seja na citação de deuses e heróis que explicam melhor as atitudes dos personagens. O título da segunda novela, Mas os deuses estão vivos, sugere que os deuses vigiam a todo instante os atos pecaminosos que ocorrem na estância da Fonte. As virtudes desaparecem lentamente nas ações adúlteras de Micaela e nos pensamentos incestuosos de Jacinto.

Sem virtudes, restam as misérias da vida e o perigo de sentimentos. Nessa parte da obra, Assis Brasil faz referências aos personagens da mitologia grega. Entre Hércules que, na voz de Jacinto, ganha vida, quando relembra o pai, Baltazar Antão:

E vinham outras lembranças, o pai desapontando de um remoto passado, agora o enxergava tomando banho na sanga, forte musculoso, as costas largas emergindo da água, rebrilhando ao sol. De repente mergulhava, para aparecer lá adiante, sacudindo a cabeça, esfregando os olhos. Um Hércules (viu depois a gravura no convento) quando saía da água, corpo brilhando, as carnes rijas, as vergonhas volumosas balançando ao léu, escuras e perdidas num tufo de pêlos (ASSIS BRASIL, 1993, p. 133).



As obras, portando, dialogam. As virtudes da casa devem ser mantidas, mesmo com o fim trágico do patriarca, assim como ocorre no palácio de Argos, pelos menos até a próxima tragédia, intitulada As Coéforas.

Ésquilo e Assis Brasil permitem ao leitor compreender um pouco mais sobre os homens e sobre o que rege suas vidas. Homens tão distantes no tempo, porém tão próximos nos valores.

O confronto do homem com seus limites costuma gerar grandes tragédias. Ao ultrapassar o métron, a medida humana de cada um, o homem encontra em si mesmo temores que apenas serão remediados com algum ato, que, geralmente, atinge proporções grandiosas. As atitudes medidas, a preservação da imagem, o cumprimento do que é exigido pelos outros, as virtudes e, até mesmo, a religião, tudo se consome quando há o despertar para novos caminhos, para uma nova existência. Esses novos caminhos, contudo, não possuem apenas o prazer da descoberta, que, aliás, se demonstram efêmeros, neles encontram-se também as misérias da vida e o perigo de sentimentos.

Ésquilo, ao colocar sua arte nas palavras, imortaliza o herói Agamênon. Os versos surpreendentemente elaborados contam a sinuosa tragédia familiar vivida pelo rei de Argos, na luta vã contra o Destino ou contra a vontade dos deuses. Assis Brasil, muitos séculos após, realimenta o mito e o traz para a pacata estância da Fonte, em pleno pampa gaúcho.

Agamênon e Baltazar Antão partem para a guerra, afim de manterem a honra e serem leais: o comandante-chefe das forças gregas a move por seu irmão, e o coronel pelo rei. O vazio que deixam ao partirem é preenchido rapidamente por suas cônjuges que se tornam adúlteras. A rainha Clitemnestra une-se com Egiato, inimigo do marido, e Micaela trai Baltazar Antão ao apaixonar-se pelo francês Félicien, que se instala na estância, em virtude de suas pesquisas de cunho naturalista.

Os filhos do rei e do coronel agem de maneiras semelhantes. Sentem saudade dos pais e recriminam as atitudes das mães. Electra revive em Isabel. Orestes renasce em Jacinto. As virtudes do Palácio de Argos devem ser mantidas, assim como as da estância da Fonte. Os rumores e falatórios do povo são abafados pelas filhas, que temem o desgosto e a infelicidade de seus respectivos pais. A vontade de conter os atos impróprios das mães parte dos filhos, que, por tradição e exigência social, devem preservar a imagem e a honra dos patriarcas.

São épocas diferentes, mas os acontecimentos são semelhantes. O livre-arbítrio proporciona escolhas fatais. Dois homens presentes em uma tragédia. Rei e coronel são assassinados ao retornarem da guerra, vítimas de suas esposas. O porquê da vingança, do adultério e da morte planejada com antecedência e cuidado nunca foi revelado. Os heróis da guerra morrem sem saber por quais prazeres e sofrimentos seus familiares viveram durante suas ausências.

Através do estudo realizado nesta monografia, é possível concluir-se que o espectro do rei Agamênon está presente no coronel Baltazar Antão, devido às semelhanças entre suas trajetórias de vida e ao desfecho reservado para a mesma. As análises acompanhadas de citações, tanto das obras que geraram o trabalho, quanto de outras fontes valiosas, ajudam a comprovar a existência de elementos de identificação entre os textos, através dos personagens, dos enredos e da estrutura. Quanto aos personagens, é possível identificar as semelhanças entre os protagonistas, Agamênon e Baltazar Antão; entre as esposas, Clitemnestra e Micaela; entre as filhas, Electra e Isabel; entre os filhos, Orestes e Jacinto. Os patriarcas são homens fiéis à família e á sociedade. As esposas, insatisfeitas com os maridos e com a vida, tornam-se egoístas e vingativas. As filhas, ao contrário, mantêm-se confiantes em um desfecho favorável quando da chegada dos pais. Os filhos vivem atormentados e divididos entre o amor para com as mães e quanto à fidelidade aos pais. Com relação aos enredos, os patriarcas são mortos pelas esposas, que os traem durante o período em que estão na guerra. As filhas tentam contornar a situação vivida em casa, devido ao adultério das mães, aconselhando-se com escravas e torcendo pelo retorno dos pais. Os filhos sofrem com os acontecimentos, pois sabem que devem honrar os pais e, para isso, terão que enfrentar as mães. Com referência à estrutura, nota-se que os textos apresentam prólogos que prenunciam os acontecimentos. Na peça de Ésquilo, o prenúncio parte do sentinela, do coro, de Clitemnestra e de Cassandra. Em As virtudes da casa há um prólogo diante de cada novela do romance, que fornece dados prévios com relação ao desenrolar do enredo.

Além de contribuir com a base teórica sobre o mito, sobre a obra de Assis Brasil e sua relação com a peça de Ésquilo, este trabalho encerra um estudo sobre os valores e atitudes que regem a trajetória humana. Ante a dor e a morte, a alma do herói revela-se em sua beleza comovedora, em sua grandeza trágica que toca, às vezes, o sublime e o inunda de uma luz inapagável. A história do mundo não é outra coisa senão a consagração do espírito pela dor. Sem ela, não pode haver virtude completa, nem glória imperecível.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. As virtudes da casa. 3. Ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

2 BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia comédia. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1985

3 ÉSQUILO. Agamênon. Trad. por Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.

4 – .Oréstia . Trad. por Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

5 GRÉCIA ANTIGA: A literatura grega. Wilson A. Ribeiro Júnior, 2002. Disponível em: http://warj.med.br/lit/lit05a-5.asp.Acesso em: 06 jul. 2002.

6. GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.

7 LESKY, Albin. História da literatura grega. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

8 MOISÉS, MASSAUD. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.

9 SCHÜLER, Donaldo. Literatura grega. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.


* Janaína Cé Rossoni - Graduada em letras (Unilasalle). Especialista em Leitura e Produção de Textual (Unilasalle). Professora nos sistemas públicos de educação estadual e municipal de Canoas.

La Salle- Revista de Educação Ciências e Cultura. V8. n2. p.7-22. jul.-dez. 2003.