DE
PRIMEIRA ÁGUA
Geraldo Galvão Ferraz*
Leia Livros, São Paulo.
Num país em que triste e ironicamente elege-se um anacrônico fazedor
de sonetos para ser o "intelectual do ano", raras são as ocasiões de
colocar algum lastro no prato positivo da balança cultural e,
sobretudo, da literária. Uma das oportunidades mais gratas destes
últimos anos tem sido a emergência de um consistente elenco de
livros e autores vindos do Rio Grande do Sul.
Cyro Martins, Josué Guimarães, Moacyr Scliar, Sérgio Caparelli,
Tânia Faillace, enter outros, têm atingido um invejável nível
qualitativo em sua ficção. Roberto Bittencourt Martins com seu
Ibiamoré, o trem fantasma, invadiu a primeira linha do romance
brasileiro (confiram, o livro é da L&PM e está distribuído em todo o
País) com uma explosão de talento para imaginar e contar estórias.
Luiz Antonio de Assis Brasil é um caso semelhante.
Bacia das almas, sem qualquer dúvida, é o melhor e mais bem
realizado dos romances com que ele vem traçando uma saga familiar
que se confunde com a trajetória histórica do próprio Rio Grande do
Sul. Um quarto de légua em quadro e A prole do corvo, revelaram um
escritor promissor, embora desigual; Bacia das almas já traz um
autor extremamente consciente, que não se perde com a multiplicidade
de fios narrativos e que consegue escapar da tradicional
incompetência do escritor brasileiro em fazer as personagens falarem
como gente de verdade.
A cenário principal do livro é a cidadezinha de Aguaclara, onde fica
a estância Santa Flora, onde pontifica o coronel Trajano Henrique de
Paiva, um misto curioso de ditador latino-americano e de déspota
esclarecido à maneira, digamos, do Príncipe Fabrizio, de O Leopardo.
Trajano é prefeito e estancieiro, senhor absoluto, mandante
autoritário em assuntos públicos ou familiares. É uma personagem de
exceção numa paisagem sonolenta e age de acordo. Como, também de
acordo, o autor explora suas variadas facetas. O livro gira em torno
de sua energia e seus ímpetos. O contraste com seus filhos é
flagrante, e Trajano sabe disso. Trata mal o desorientado Gonçalo,
que se torna, à falta de outra rebeldia, integralista fanático. É
enfrentado por Luís que, casado contra sua vontade com a filha de um
imigrante, tem de pagar o pesado tributo da impotência sempre que se
aproxima do domínio de Trajano. O terceiro filho escapa para o
deboche homossexual. Incapaz de entender as mulheres, Trajano tenta
submetê-las: a amante, Cheta, pelo poder; a mulher, pelos laços do
casamento; a filha Márcia, transformando-a numa réplica glacial da
esposa, após a morte desta; a filha, Laura, pelo estupro.
Usando repetidos flashbacks e uma alternância vertiginosa de focos
narrativos (o que dá um ritmo agilíssimo ao livros), Assis Brasil
passa em revista o período de meados do século XIX (a infância de
Trajano) até o advento do Estado Novo getulista (marcado pela morte
do Coronel). Quando Trajano fica doente, o romance vai ganhando um
tom cada vez mais surreal, e o autor usa um recurso de que é mestre
- o humor. Talvez se esse fosse todo o clima do livro, Bacia das
almas poderia ser uma espécie de contrapartida sulina de Galvez, o
Imperador do Acre. Mas, assim como é, embora sem atingir a qualidade
do livro de Márcio Souza, constitui-se em ficção de primeira água,
com virtudes mais do que suficientes para permitir que se espere com
grandes esperanças o próximo livro de Luiz Antonio de Assis Brasil.
Maio de 1982, p. 6
* Geraldo Galvão Ferraz é jornalista, tradutor e crítico literário. |