Entrevista com
José Pinheiro
Torres
José Pinheiro
Torres -
Começando pelo
princípio: como
foi sua
formação?
Luiz Antonio
de Assis Brasil
- Pensando em
formação
escolar, esta
foi de excelente
qualidade.
Estudei com os
jesuítas, que
possuem um
colégio
centenário em
Porto Alegre. Os
padres da
Companhia
estimulavam os
estudos
clássicos, a
filosofia e a
língua
portuguesa. Já
na adolescência
eu lia
Cervantes,
Chateaubriand e
Milton no
original - e
isso não é
vantagem alguma,
porque todos os
colegas faziam o
mesmo. Creio que
esse foi o
grande impulso
para a
literatura,
embora em casa o
ambiente não
fosse estranho
às letras. Tive
a oportunidade,
também, de
estudar música:
aprendi
violoncelo e fui
músico da
Orquestra
Sinfônica de
Porto Alegre.
Todo esse
conjunto de
fatores, creio,
já preparava o
futuro
romancista.
Esquecia de
dizer: tomei
aulas de
aquarela, mas
não passei das
garrafas e das
maçãs.
JPT -
Falando sobre a
Orquestra
Sinfônica: como
foi a
experiência?
Assis Brasil
- Foram quinze
anos dedicados à
Orquestra da
minha cidade;
uma experiência
importante, por
vários motivos.
Em primeiro
lugar, pela
consciência de
que, em uma
orquestra, o
músico é um
executante no
sentido próprio
do termo. A
emoção e a
paixão são do
maestro e do
compositor. Em
segundo lugar,
enquanto
experiência
social, esta é
riquíssima.
Vive-se, na
orquestra, um
ambiente
bastante
neurótico,
porque se trata
de um pequeno
grupo no qual há
muita competição
em torno dos
postos. Postos
melhores
significam
salários
maiores, e a
partir desse
fato se
estabelece uma
pesada
hierarquia
dentro da
orquestra. E eu
vivi esse clima
durante a
ditadura
militar, quando
havia enorme
verticalização
do poder. As
coisas eram bem
mais graves do
que se pensa.
JPT - E
isso deu livro?
Assis Brasil
- Deu: O
homem amoroso,
uma novelinha.
JPT - O
senhor então
abandonou a
música?
Assis Brasil
- Jamais. Posso
não praticar meu
instrumento, mas
hoje sou mais
músico do que
antes: não tenho
mais, sobre mim,
a tirania das
notas musicais.
JPT -
Quais as
leituras ou
autores que mais
o influenciaram?
Assis Brasil
- O primeiro
romance que li
por inteiro foi
A relíquia, de
Eça de Queirós.
Só descansei
quando não havia
mais nada para
ler desse autor.
Depois, foi a
vez de Flaubert,
naturalmente com
Mme. Bovary. E
depois vieram
Machado de Assis
e Erico
Verissimo. Em
seguida, Balzac,
Stendhal e Zola.
Dentre os
modernos e
contemporâneos,
estão Thomas
Mann, Faulkner,
Hemingway, Gide,
Julien Green,
Cortázar,
Carpentier,
García Márquez,
Vargas Llosa,
Saramago, Günter
Grass, Pascal
Quignard. Antes
que essa relação
se transforme
numa lista
telefônica,
resta-me dizer
que li e leio
muito, e de modo
assistemático,
guiando-me pelo
instinto ou pela
sugestão de
pessoas a quem
respeito. Não me
considero
particularmente
influenciado por
nenhum destes,
mas por todos em
geral; se fosse
imprescindível
responder à
pergunta, diria
que Eça ainda
está no cimo
desse panteão
particular: com
ele aprendi, ou
penso ter
aprendido, como
se estrutura um
romance e como
se desenvolve
uma personagem.
JPT - O
que pensa da
literatura
chamada
pós-moderna?
Assis Brasil
- Não acho nada,
pois se trata de
um momento
estético e, como
tal deve ser
entendido.
Particularmente,
minha
sensibilidade
não chega a
perceber como,
em certo viés da
pós-modernide,
se construa um
romance sem
conflitos,
conflitos sem
personagens,
personagens sem
drama. Mas o
futuro é que
poderá
estabelecer um
juízo mais
razoável.
JPT -
Quando começou a
escrever
"profissionalmente"?
Assis Brasil
- Em 1974 tive
uma doença
gravíssima, que
implicou e
internamento
hospital,
cirurgia, risco
de vida, etc. Na
convalescença
comecei a
escrever aquilo
que seria meu
primeiro livro,
Um quarto de
légua em quadro.
Não tinha idéia
do que se
tratava. Minha
intenção
original era
escrever uma
obra histórica
sobre o
povoamento
açoriano no Rio
Grande do Sul.
Pois virou
romance, e desde
aí não parei
mais.
JPT - Por
que Açores?
Assis Brasil -
Explico: sou
descendente de
açorianos por
parte de pai e
de mãe. Assim, o
que era um
interesse
genealógico
acabou em
interesse pelos
Açores, minha
segunda pátria,
e onde tenho
excelentes e
fraternais
amigos. Já dei
aulas de
Literatura
Brasileira na
Universidade dos
Açores e lá fiz
uma investigação
de
pós-doutorado.
JPT - A
propósito: e a
carreira
acadêmica?
Assis Brasil
- Encontrei-me
no trabalho
universitário.
Tenho, ali, a
possibilidade de
conviver, de
maneira mais
palpável, com a
literatura e
seus autores.
Não poderia
fazer outra
coisa. À parte
disso, minha
Universidade me
propicia
ministrar a
Oficina de
Criação
Literária, que
teve início em
1985 e que segue
até hoje.
Orgulho-me de
meus ex-alunos,
que por ali
passaram, e que
hoje são
escritores
reconhecidos
pela crítica e
pelo público.
JPT - Mas
voltando para
sua produção:
como é seu
método de
trabalho?
Assis Brasil
- Como sou - bom
ou mau -
romancista,
sinto
necessidade de
um planejamento
prévio da obra.
Sem planejamento
não poderia
escrever.
JPT -
Isso não tolhe a
imaginação?
Assis Brasil
- Não, pois o
verdadeiro
momento de criar
á quando se tem
a idéia. Depois,
é trabalhar a
idéia, de modo
que se apresente
lógica, pois no
romance vige o
princípio de
causa e efeito.
O que importa,
entretanto, é o
resultado final,
isto é, se o
livro é bom ou
ruim. O modo
como o romance
foi escrito é
algo que
pertence ao
domínio privado
do autor.
JPT - O
senhor reescreve
muitas vezes?
Assis Brasil
- No passado,
sim; hoje, com o
uso permanente
do computador,
posso refazer à
medida em que
escrevo; mas a
intervalos
imprimo uma
versão, para
testemunho e
registro.
JPT -
Acha importante
a técnica?
Assis Brasil
- Técnica
literária - eis
um sintagma
diabolizado em
certos meios
cultos: é como
se a literatura
derivasse apenas
da inspiração
(sabe-se lá o
que é isso), ou
que a técnica
fosse algo
menor, própria
dos obreiros
manuais, dos
carpinteiros e
alfaiates. A
verdade é outra:
qualquer arte
possui sua
técnica. Tinham
razão os
arquitetos das
catedrais
góticas: ars
sine scientia
nihil est.
Entendo a
técnica
literária como a
soma das
condições
necessárias à
escrita. É o
senso de medida
na frase, sua
musicalidade, a
perfeita
construção do
diálogo, a
eficiência
descritiva e
narrativa e, em
especial, a
idéia de
proporção da
peça inteira, de
modo que suas
partes dialoguem
com a necessária
harmonia
compositiva.
Técnica também é
não
atrapalhar-se
com as palavras;
ao contrário, é
fazer com que
trabalhem a
nosso favor.
Técnica é
entender o
axioma: o que se
corta, ganha-se
- os leitores,
aliviados,
agradecerão essa
higiênica
providência.
Técnica é saber
que não se
escreve para
desabafar, mas
para construir
uma realidade
estética
autônoma, a ser
fruída pelos
leitores.
Dominar a
técnica é
escrever de tal
maneira que o
leitor queira
saber o que virá
no capítulo
seguinte. É, por
isso, dizer algo
novo a cada
frase.
JPT -
Então a técnica
pode ser
aprendida?
Assis Brasil
- A técnica
literária -
assim com a
técnica da
pintura, da
arquitetura, da
música, etc., -
pode ser
conquistada num
curso à
semelhança dos
laboratórios do
texto (no
Brasil,
"oficinas"). Os
laboratórios são
uma experiência
consagrada no
mundo inteiro, e
vêm obtendo
crescente
aceitação desde
que foram
criados nos
Estado Unidos, a
partir da década
de 40 do século
passado. Grande
escritores
saíram dali, e
agora lembro
Raymond Carver.
O curioso, nesse
sarau polêmico,
é que não se
discute a
utilidade, por
exemplo, de uma
academia de
dança. Pensado
na raiz desses
preconceitos e
equívocos,
percebe-se,
subjacente, uma
atitude algo
elitista, algo
reacionária,
algo romântica,
algo ingênua,
que leva alguns
autores a
acreditarem
apenas no
talento, algo
problemático,
por dividir as
pessoas entre
talentosas e
não-talentosas,
partição
inaceitável num
mundo que se
esforça para,
sem
discriminações,
assimilar e a
integrar as
diferenças e as
minorias. A
propósito, há um
interessante
livro de Beth
Joselow,
chamado, muito
significativamente,
de Writing
without the muse.
(1995). Evoco,
para ilustrar, a
célebre crítica
que Machado de
Assis escreveu a
O primo Basílio,
na revista O
Cruzeiro, em 16
de abril de
1878. Ali, pela
primeira vez,
foi dita em
português, a
expressão
"oficina
literária". A
certo instante
do texto - na
verdade, uma
desanda geral no
colega português
- diz Machado:
"[Eça de
Queirós]
transpôs ainda
há pouco as
portas da
oficina
literária..."
Por evidente não
está a
referir-se a
esse fenômeno
atual, mas
alerta para a
existência de
uma técnica e
para a
necessidade de
um aprendizado
dessa técnica. E
nem Machado
furtou-se a
isso.
JPT -
Quais suas
relações com a
crítica?
Assis Brasil
- Temos de
distinguir: de
um lado há a
verdadeira
crítica, que é
uma peça de
reflexão
embasada num
referencial
estético-teórico,
a qual analisa a
obra mediante
critérios
ponderáveis e
universalmente
reconhecíveis;
de outro lado,
há a opinião,
fruto muitas
vezes da
efemeridade do
gosto, quando
não de
sentimentos
derivados do
compadrio ou, ao
contrário, do
preconceito.
Recomendo ao
escritor que
leia a ambas;
quanto à
primeira,
aprenderá
bastante sobre a
arte literária,
o que poderá
ajudá-lo a
escrever melhor;
quanto à
segunda, acho-a
ainda mais
interessante,
pois aprenderá,
e muito, sobre a
natureza humana
- que é, afinal,
a matéria-prima
da Literatura.
JPT -
Dentre sua obra,
há algum romance
de que o senhor
goste mais?
Assis Brasil
- Isso é o mesmo
que perguntar a
um pai de qual
filho gosta
mais; mas para
não fugir à
pergunta: As
virtudes da casa
é o romance que
melhores
lembranças me
traz da época de
sua escrita. Não
sei se é o
melhor,
literariamente
falando, mas é
certo pertence
ao inventário
das minhas obras
inesquecíveis.
JPT -
Passando ao
cinema. O senhor
tem várias obras
que passaram ao
cinema ou estão
em fase de
passar. Como o
senhor vê esse
fato?
Assis Brasil
- Com muita
naturalidade. Se
há algum mérito
nisso, ele se
restringe à
circunstância de
eu manter-me
fiel a uma
idéia: toda a
narrativa deve
possuir
episódios,
coisas
acontecendo.
Isso é cinema.
Todo o romance
deve despertar
no leitor aquela
pergunta
sôfrega: "E
agora? O que vai
acontecer?". E é
isso que se
espera de um
filme. Não me
considero um
purista quanto à
fidelidade do
filme ao livro.
São duas
modalidades
diversas de
narrativa. Se o
romance pode ter
maior liberdade
em explorar as
personagens e
suas tramas,
abrindo espaços
para a reflexão,
já o cinema deve
ficar no "osso
da história",
pois é preciso
compactar em
hora e meia todo
um universo
narrativo.
Sempre dei
ilimitado poder
aos adaptadores
ou diretores dos
filmes baseados
em meus livros.
Tal como no
romance, importa
é que seja um
bom filme.
JPT -
Alguns críticos
acham que o
senhor pratica o
romance
histórico.
Concorda com
isso?
Assis Brasil
- O romance
histórico
tradicional, ao
estilo de Scott
e Herculano, não
se pratica mais;
pelo menos, se
pratica pouco -
e de má
qualidade. No
denominado "novo
romance
histórico" - que
Linda Hutcheon
chama de "metaficção
historiográfica"
-, a história é
sempre pretexto,
e é deformada,
reinterpretada,
discutida e,
até, criada.
Imagino ter
feito, e com
certa
freqüência, essa
segunda
modalidade, com
recurso à
paródia, ao
pastiche e, uma
ou duas vezes,
ao plágio
burlesco. Penso,
contudo, que é
um capítulo
encerrado em meu
trabalho. Hoje
me preocupa,
mais que tudo, a
ficção. Mesmo
que os plots
estejam situados
num tempo
pretérito, isso
é apenas uma
opção do
escritor: o
passado me dá
maior liberdade
criadora, e as
emoções e
paixões me
parecem mais
autênticas.
JPT -
Valesca de
Assis, sua
esposa, também é
escritora, e
premiada, com
três romances
publicados. Há
interação em
família?
Assis Brasil
- No plano
afetivo e
emocional, a
mais completa
interação; no
plano literário
costumamos a
separar as
coisas. Contudo,
jamais publico
algo sem que a
Valesca tenha
lido
previamente.
Suas observações
são
valiosíssimas e,
às vezes,
decisivas. Se
consegui algo em
minha trajetória
de escritor,
devo a esta
mulher brilhante
a ao mesmo tempo
modesta, que me
dá um sentido à
vida e ao que
escrevo. Creio
que isso diz
tudo. |